Como este mundo é interessante. O sujeito pode ser corrupto e de quebra mentiroso, desde que seja religioso. De modo geral, escuto o seguinte: "Imagina se fulano estivesse fora da Igreja --- ou de qualquer Templo religioso ---. Nossa, seria uma pessoa pior ainda". Ora, tal afirmação me leva a concluir que algumas práticas religiosas, nos finais de semana, trariam uma espécie de nobreza de caráter ao sujeito. Felizmente, acredito que isso seja uma bobagem sem tamanho, afinal de contas, a religião, no caso do indivíduo corrupto e mentiroso, é apenas algo que encobre essas nobres características.
É óbvio que as mentirinhas do cotidiano acontecem. Aquela velha história da mentirinha boa, da inveja boa, etc. Contudo, acredito que o caso do sujeito corrupto, mentiroso e religioso seja o exemplo de alguém que já está mais do que acostumado com a hipocrisia e com tudo que dela se origina.
Agora, pensemos um caso um pouco diferente desse. Imaginemos que esse indivíduo é mentiroso, corrupto e ateu. Nossa, com toda certeza, a maioria dos religiosos não veria salvação para essa alma. Apenas simplificarão dizendo: "Falta Deus na vida dele". Nada mais. Não acrescentarão nada além disso! Caso ele acreditasse na existência de Deus, aí sim ele teria alguma salvação e tais religiosos, por conseguinte, esperariam algum ato moral de sua parte, mesmo que fosse no dia do Juízo Final.
Outro exemplo: Pensemos em um ateu que busca sempre ser honesto, apesar de cometer alguns "pecados diários". Caso ele seja ateu, algum religioso continuaria dizendo que falta Deus. Não importa que esse sujeito seja a pessoa mais honesta do mundo, porque, faltando Deus, faltaria o ingrediente secreto que garantiria a beatitude, isto é, a felicidade do além-mundo.
Dado o último exemplo, pergunto: Caso Deus exista, Ele não deveria ser ao menos coerente? Se tem um indivíduo que não encontrou razões plausíveis para acreditar na existência de Deus, esse indivíduo não mereceria o paraíso até mais do que aquele que apenas levava a bíblia ao pé da letra e colocava em prática as palavras do padre --- ou pastor, etc --- sem ao menos questionar a veracidade das informações?
Assim, o quadro ficaria da seguinte forma: 1) Dou o Inferno de presente de Natal ao sujeito corrupto, mentiroso e religioso. 2) Peço uma análise menos voltada aos céus do caso do corrupto, mentioso e ateu. Dou-lhe o Inferno, mas, por favor, tiremos Deus dessa história. O sujeito agia imoralmente não por falta de Deus, mas sim por falta de vergonha na cara. 3) Céu ao homem coerente, pois se Deus existe, Ele deve ser ao menos coerente, como falei acima. Confesso que se eu fosse Deus, a primeira coisa que faria seria vomitar aqueles que não refletem as palavras daqueles que ministram as celebrações religiosas.
Para elucidar essa questão, peço socorro ao texto "Resposta à pergunta: o que é Esclarecimento?" de Immanuel Kant, pois nele o filósofo afirma que há dois usos da razão, sendo um privado e o outro público. O primeiro seria o uso da razão realizado, por um leigo, no interior da Igreja, não revelando uma posição crítica, por exemplo, com relação aos dogmas. Já o segundo uso da razão possibilitaria uma posição crítica referente aos dogmas, por meio de artigos, garantindo, portanto, um esclarecimento tanto ao escritor quanto ao leitor. Mas aqui estou trabalhando com exemplos e fazendo uma pequena adaptação para a nossa realidade pós-moderna, já que nela os confrontos intelectuais, quando não são pessoalmente, acontecem por e-mails e artigos.
Dado a breve análise do texto de Kant, arrisco dizer que o religioso antes de condenar o ateu virtuoso, primeiramente deveria atentar para a coerência desse homem. Deveria estar atento ao fato dele não ser hipócrita como alguns religiosos fazem questão de ser. Deveria fazer um uso público da razão, ao invés de fazer uso privado dessa faculdade, pois, em um momento inoportuno, tal uso tem por consequência inevitável o impedimento da clareza de espírito.
Enfim, supondo que Deus exista, deixo a seguinte questão ao leitor: Será que o ateu virtuoso precisaria da misericórdia de Deus para visitar o tão sonhado paraíso ou somente a sua coerência bastaria?
8 comentários:
Eu acho que Kant consideraria o ateu virtuoso um incoerente, Fabiano. Como diz o Vinicius, Deus daria sentido a uma vida moral. Por outro lado, nenhuma crença pode ser um dever moral, justamente porque não é um ato do arbítrio.
Por exemplo, não é uma questão de escolha que eu acredite que eu esteja escrevendo esta mensagem em um dia de sol. Por isso, não faria sentido que Deus nos castigasse pela falta de fé ou nos premiasse pela presença dela. Enquanto isso, os religiosos, no mais das vezes, realmente tratam a falta de fé como o maior dos pecados.
Esta confusão entre a esfera dos deveres e a esfera das cognições parece ter acometido até mesmo filósofos, como Tomás, que, pelo que me consta, dizia que o herege devia ser banido, não apenas da Igreja, pela excomunhão, mas também do mundo, pela morte.
Abraços
Andrea
Andrea,
Como sempre escrevendo belos comentários!
A partir de Kant, poderíamos dizer que o ateu é um defensor da antítese "Deus não existe", enquanto o crente defensor da tese "Deus existe". Como sabemos, ambas proposições são vazias de significado, porque existência não é predicado e também pelo fato da idéia transcendental de Deus não servir nem como idéia problemática (ficção heurística), caso pensássemos em seu perspicaz comentário apresentado na UEL.
Contudo, aqui, de certa forma, tentei salvar o ateu das críticas dogmáticas (existem verdadeiras críticas, caso estejam ligadas ao dogmatismo?) de alguns religiosos, mostrando que a religião, caso o indíviduo opte por ela, deve ser posta, na ordem das considerações, muito após a moralidade. Então, partindo do pressuposto que Deus existe, a partir do momento que o religioso X peca na coerência entre a vida e a prática religiosa, ele precisaria da misericórdia divina, enquanto o ateu virtuoso teria de ser "engolido" por não necessitar de misericórdia, justamente por não ter pecado em coerência. O ateu apenas não encontrou razões plausíveis para dizer "Deus existe" e, além disso, nem precisou de Deus para dar sentido a sua vida moral.
Com isso, concluo que caso misturássemos a esfera dos deveres com a esfera das cognições, o ateu, caso fosse virtuoso, não poderia ser condenado por ter tido uma vida sem fé.
Forte abraço,
Fabiano.
Esse sempre foi um impasse que eu tinha contra a religião e seus seguidores. A hipocrisia na postura daqueles que somente comparacem à Igreja para um dia serem salvos no Juízo Final.
Sempre tive pra mim que se Deus existe ele não seria mal o suficiente pra cercear a minha liberdade, fazendo com que eu obrigatoriamente escolhe crer e tudo mais. Mesmo pq isso iria contra a teoria do livre-arbítrio...
Quanto ao ateu virtuoso, eu acho que no final ele será salvo, caso Deus exista.
Abraço!
me recuso a ler... letra muito pequena.
aumenta ai vai...
abraço
pronto fabiano, postei no meu blog, dê uma olhada... espero o rigor de um kantiano em tuas análises ein!
e mais uma vez: aumente esta letra, ou não leio!
hauiahiuahiuaha
abraço
Para o cristianismo, ele precisaria "escolher" visitar o paraíso. Ou seja, é mais que mérito, é ato livre. Todavia, esta escolha não é feita de um desejo tolo. Escolher Deus é escolher uma vida virtuosa, mas não porque há "mandamentos" que te obrigam a isto, e sim porque um desejo ardente de fazer o bem, de construir algo bom, "instala-se" neste que toma tal decisão.
É claro, Rudah, que aqueles que frequentam igrejas esperam o paraíso. Porém, (não os de carteira assinada) os "seguidores" de uma religião como o cristianismo, vivem uma vida virtuosa porque isto é o ser cristão: comprotemer-se com o fazer o bem para o outro, amar o outro. Consequentemente, cultivar algo que vai além deste mundo.
Bom texto, Fabiano!
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